O SENHOR ATLETISMO

Testemunho na primeira pessoa de Moniz Pereira aquando do Centenário do Sporting como membro da «comissão de honra do Centenário do Sporting» :


(O Prof. Moniz Pereira, com a fotografia de um quarteto vencedor da Taça dos Campeões Europeus de Corta-Mato)

"Sou o sócio número dois do Sporting e portanto um dos mais antigos. Sócio do Sporting Clube de Portugal e não do Sporting Futebol Clube, que são coisas diferentes. Gosto sempre de deixar isto bem claro. O meu pai fez-me sócio onze meses depois de ter nascido, na mesma altura em que também,inscreveu o meu irmão, Coronel Nuno Moniz Pereira. Eu sou o número dois e ele é o quatro, apenas por ter nascido à frente. O número três, como se sabe, é posse perpétua de Francisco Stromp, que foi um dos fundadores do Clube.
Desde tenra idade comecei a frequentar as instalações desportivas e sociais do Sporting com o meu pai. O estreitamento da minha ligação ao Clube ficou a dever-se, contudo, ao facto de ter tido a sorte de ser vizinho do Dr. Salazar Carreira, um homem com uma cultura deportiva ímpar, como hoje não há nenhum. Salazar Carreira fou uma personalidade a todos os títulos notável e no Sporting fez um pouco de tudo. Foi presidente, atleta de várias modalidades, treinador de râguebi, de voleibol, de atletismo, foi ainda presidente da FPF, vice-presidente da Federação Internacional de Voleibol, enfim, uma grande figura à qual nunca foi feita a devida homenagem. Como vizinhos, éramos muito próximos. Tínhamos uma espécie de "vaivém" nas traseiras das nossas casas, eu morava no 3 e ele no 5 da Avenida da República, e por aí nos comunicávamos com frequência, de uma varanda para a outra. Ele emprestava-me os jornais desportivos, livros franceses, livros de atletismo e outros que eu lia e depois lhe devolvia. Como ele ia praticamente todos os dias para o Sporting com os filhos ( a Margarida Salazar Carreira chegou a ser campeã nacional de salto em comprimento ), eu passei a ir com eles. Já era sócio e passei a ter alguém que me levava e trazia. Desta forma, comecei também eu a ser frequentador assíduo do Sporting, graças a essa figura excepcional que foi Salazar Carreira. Ainda hoje recordo um gesto que teve pouco tempo antes de falecer : disse à filha para me chamar e escolher todos os livros que quisesse levar de casa dele. Fiquei mais que sensibilizado, acho que chorei nesse dia. Mas lá fui, enchi o meu Volkswagen de livros, alguns deles raridades, que me deram muito jeito na minha carreira de professor de Educação Física e treinador de atletismo. Não tenho dúvidas em dizer hoje que se não fosse o Dr. Salazar Carreira eu não teria sido nada do que consegui vir a ser. Mais : ultrapassei largamente aquilo que pensei que poderia fazer. Estou muito satisfeito comigo próprio por ter conseguido, neste país onde se liga tão pouco ao atletismo, ajudar a fazer campeões da Europa, campeões do Mundo, recordistas do Mundo, recordistas Olímpicos, medalhas de ouro de Jogos Olímpicos, enfim, coisas que para mim seriam impensáveis, em jovem.
A minha vida está intimamente ligada ao Sporting. Neste Clube passei boa parte dela. Aqui comecei a fazer ginástica, em criança. Mais tarde comecei a jogar ténis de mesa no Ateneu, onde juntamente com o Moisés Ayash e o Manual Pina conquistámos um campeonato nacional de terceiras categorias. Mas como éramos todos sócios do Sporting, no ano seguinte já estávamos de leão ao peito. Depois é que vieram o atletismo e o voleibol. Cheguei a ser treinador de voleibol e atletismo, em simultâneo. De manhâ tinha aulas no INEF, de tarde ia para o Sporting dar treinos de atletismo e à noite já estava no ginásio da Escola Nuno Gonçalves, onde decorria a preparação do voleibol do clube, de cuja equipa eu era treinador, jogador e capitão. Às vezes, nem tinha tempo para jantar. Um esforço compensado com a conquista de dois campeonatos nacionais, em 1954 e 1956.
Eleger o momento mais marcante da minha passagem pelo Sporting ao fim de tantos e tantos anos não é facil. Os momentos mais destacados são aqueles que estão ligados às vitórias. No atletismo, por exemplo, em 25 anos fomos 24 vezes campeões nacionais. Em 18 presenças na Taça dos Clubes Campeões Europeus de corta-mato ganhámos 14. E fomos segundos nas restantes quatro. São coisas que marcam. Noutro plano, a medalha de ouro do Carlos Lopes ou o recorde do Mundo dos dez mil metros do Fernando Mamede foram ocasiões especiais. Ainda hoje me comovo quando falo nisto. Então se revejo as imagens, choro.
Neste Clube fiz muitas outras coisas. Fui seccionista. Secretário da Direcção. Dirigente. Professor de ginástica. E também preparador físico da equipa de futebol em várias ocasiões. Na altura dos "Cinco Violinos", por exemplo. Ou mais tarde, com Fernando Vaz como treinador, quando fomos campeões nacionais da época 1969/70 e perdemos a final da Taça de Portugal. No ano seguinte, em 1971, ficámos em segundo lugar, mas em contrapartida ganhámos a Taça. E continuava sempre a dar treinos de atletismo. Passava aqui a vida, de manhã, à tarde e à noite.
Ainda hoje continuo a dar muitas horas a este clube. E enquanto tiver saúde têm de me aturar, pois jamais deixarei de lutar pelos meus ideais".

PERFIL
Nome : Mário Alberto Freire Moniz Pereira ( ex-treinador e dirigente)
Data de nascimento : 11 de Fevereiro de 1921
Naturalidade : Lisboa
Sócio : Nº 2
Licenciado em Educação Física, Mário Moniz Pereira tem um vastíssimo currículo. Foi professor durante 27 anos no INEF e praticamente toda a vida tem servido o Sporting, como atleta e treinador de várias modalidades ou dirigente ( é actualmente vice-presidente do Conselho Directivo).
Também conhecido por " Sr. Atletismo", está intimamente ligado a alguns dos mais notáveis feitos do desporto português, como técnico de nomes como Carlos Lopes, Fernando Mamede, Carlos Cabral, Gémeos Castro e muitos outros. Foi por diversas vezes distinguido pelo Estado português e por muitos organismos internacionais ligados ao desporto e ao movimento olímpico.

Fonte : Livro " Sporting Centenário - 100 histórias de glória" , edição especial do Jornal Correio da Manhã